terça-feira, 25 de agosto de 2009

Afasta de mim este cale-se


Este artigo eu escrevi um tempo atrás para o site "afasta de mim este cale-se", dos estudantes de jornalismo da UFF (Universidade Federal Fluminese), com o título "internet e direitos humanos".



Deu no jornal

“No dia 29, às 22h40, ela deu início à tragédia. Com a menor L., 13 anos, e mais duas garotas, Sabrina Aparecida Marques Mendes, a Brenda, 21, fez sinal para que o ônibus 350 (Passeio-Irajá) parasse. Entrou no veículo, bateu na lataria para acordar os passageiros e esbravejou para que fossem para o fundo enquanto a gasolina era derramada. Sabia que o fogo causaria mortes. Presa ontem, na Favela White Martins, em Brás de Pina, chorou e negou envolvimento no crime. Horas depois, trocou as palavras por um silêncio debochado e posou, orgulhosa. “Vocês querem que eu vire para cá?, disparou, em uma de suas poucas declarações, ao ter o nome chamado pelos fotógrafos”.

No trecho acima, retirado de uma reportagem publicada no Jornal O Dia, o repórter narra a forma como a acusada Sabrina Aparecida Marques ateia fogo a um ônibus, na cidade do Rio de Janeiro, em dezembro de 2005. Sabrina parece não ter voz na reportagem. Sua única declaração de inocência é tratada com desprezo e seu silêncio interpretado como deboche. A narrativa é toda baseada, portanto, no informe da polícia e mais: Sabrina não “fala”, não “diz”. Sabrina, a personagem-bandida, “dispara”. Assim, como quem provoca um susto ou dá uma declaração polêmica. Dois meses depois, a surpresa: a moça era inocente. Aliás, ela sequer conhecia Brenda, a verdadeira acusada do crime. Para a então inspetora da Polícia Civil, Marina Magessi, a ré foi “arrogante” pois se dizia inocente e “não tinha um álibi” para o momento do crime. Não ter um álibi é arrogânica. E narrar um crime baseado em informações preliminares de apenas um lado da história? Afinal, tem a mídia o direito exclusivo de narrar? E que conseqüências este monopólio da fala tem trazido para a própria instituição midiática? Por que Sabrina, assim como tantos outros acusados de cometer crimes, teve sua voz completamente abafada pelas verdades incontestáveis da imprensa?
Casos emblemáticos de erros da mídia contribuíram para uma atual e crescente tendência da perda da confiança nas instâncias mediadoras. Este fenômeno tem, como efeito, para alguns estudiosos da comunicação, uma retomada da valorização do testemunho oral, ou seja, a narrativa em primeira pessoa, livre das interferências do que o leitor ou espectador acostumou-se a enxergar como o maior manipulador social: a grande imprensa.
É a partir desta demanda que a internet se destaca como palco e espaço público em que brotam os mais diversos testemunhos pessoais. Através de blogs, os diários da internet e de comunidades no site de relacionamentos Orkut, pipocam histórias, dramas pessoais, testemunhos que têm atraído cada vez mais leitores interessados nestes relatos diretos, emocionados e, para muitos, incontestavelmente reais. A internet configura-se como este espaço público, disponível vinte quatro horas por dia, na rede mundial de computadores. Um lugar onde tudo ou quase tudo pode ser “dito” e lido, sem mediações, interferências de edição, de veículo ou de demandas do mercado. Um lugar onde, muitas vezes, a voz abafada pelas verdades incontestáveis de instituições consagradas, ganha espaço, como forma de conservar a lembrança ou para reparar uma identidade machucada.
No ano de 92, o caso conhecido como as Bruxas de Guaratuba, ou, o caso do menino Evandro, chocou o país e mobilizou toda a imprensa nacional. Trata-se do suposto assassinato de Evandro Ramos Caetano, de sete anos, em um ritual de magia negra, na cidade de Guaratuba, Paraná. Um caso marcado por testemunhos de todos os lados, apropriados pela imprensa de forma tal, que se manteve, por anos, como verdade incontestável.
Em 1998, no julgamento mais longo da história do país, que durou 34 dias, Beatriz e Celina Abagge são absolvidas das acusações de seqüestro e homicídio triplamente qualificado.
Quatorze anos após o desaparecimento de Evandro e oito anos após a absolvição em júri popular, Beatriz Abagge cria um blog e uma comunidade no site de relacionamentos Orkut, onde conta sua versão dos fatos. Beatriz relata passo a passo o momento de sua prisão, os anos de cárcere, as torturas, espancamentos e estupros sofridos para que confessasse um crime que alega não ter cometido.
Em meio à intensidade dos testemunhos em que mulheres dizem ter sido violentadas, espancadas e encarceradas por anos é quase impossível, para o leitor, permanecer indiferente. Testemunhos que aproximam o leitor da história, através de um ângulo que jamais poderá ser visto pela narrativa do crime contada através da imprensa. É como se os personagens principais envolvidos em um dos casos de homicídio que mais movimentou a mídia brasileira em todos os tempos, saíssem da frieza das breves declarações jornalísticas para uma conversa ao pé da orelha, com direito à elucidação de fatos, declarações bombásticas, reportagens da época do crime e do julgamento, além de fotografias de documentos que comprovariam seus testemunhos. É o momento e o lugar em que a verdade até então mediada pela terceira pessoa da narrativa jornalística, é, enfim, revelada. O lugar onde “multiplicam-se os pontos de vista de modo a relativizar qualquer certeza.

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